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Revolução Farroupilha, entre o mito e a história


Estamos em plena semana Farroupilha em que autoridades e a mídia se esmeram em tecer loas sobre a República Rio-Grandense e seu lema calcado na liberdade, igualdade e humanismo, devidamente cabresteados pelo MTG. Há muito mais mito do que história.


Spencer Leitman, historiador texano americano, um dos maiores especialistas em Revolução Farroupilha, autor de Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos, assevera que “o que faz a luta farrapa diferente da Guerra Civil e da Guerra do Texas pela independência foi que no Rio Grande do Sul os derrotados ganharam o controle da narrativa. Historiadores, romancistas e políticos, começando em torno de 1880, iniciaram um esforço para santificar a Farroupilha baseados em conceitos de identidade”.

Assim, com o passar do tempo, notadamente após o surgimento do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em 1947, o mito passou a substituir a história. O mito, sabemos, é político. O mito é uma espécie de cola social. A verdade desilude, separa e não pensa nas suas consequências. A história mostra que a Farroupilha não era inicialmente republicana nem jamais foi abolicionista. Há indícios, entretanto, de que alguns de seus líderes possam ter tido, em algum momento, essas inclinações.

São admiráveis na Revolução Farroupilha os lanceiros negros (traídos na infâmia de Porongos), a infantaria, os que lutaram na linha de frente, a peonada. Sempre é recomendável desconfiar dos chefes, dos heróis fabricados. A grande maioria dos frequentadores dos cafés de chaleira, das rondas crioulas, desconhece o que realmente aconteceu entre 1835 e 1845.

Seu conhecimento se resume ao que foi reconstruído pela narrativa midiática com base no mito. Dominam de forma primária nomes e fatos pontuais, incompletos e perdidos na narrativa mítica.

Sei que muitos ficarão furiosos ao ler que foi uma guerra de fazendeiros, de proprietários, das elites. Portanto, não foi uma guerra do “povo gaúcho”, como alardeia o MTG.

No auge de suas ofensivas, as tropas farroupilhas jamais passaram de seis mil homens em uma demografia oficial de cerca de 400 mil habitantes. Fica evidente que a expressiva maioria estava em armas a favor do Brasil, ou alheia à guerra civil, além daqueles que fugiam da arregimentação obrigatória.

Domingos José de Almeida, na época, tentou escrever um relato sobre a guerra. Recolheu material, mas um grupo contrário o impediu de continuar em seu trabalho: “não querem que eu escreva esta história”, revelou. Domingos foi silenciado, porque conhecia perfeitamente o passado recente e as práticas de seus pares. Censura farrapa?

A verdade é que as comemorações da revolução se transformaram em um evento de mídia. É uma roda-viva: a mídia alimenta os festejos para estar em sintonia com o público tradicionalista, fazendo a festa do mercado ligado a este segmento. É uma megaoperação de apologia ao gauchismo.

Passamos, já há algum tempo, a ter duas revoluções farroupilhas: uma, estudada nas universidades, através de obras de escritores e historiadores como Tau Golin, Mário Maestri, Juremir Machado da Silva, Sandra Pesavento, Cyro Martins, Décio Freitas e tantos outros, menos heroica e grandiosa, e a outra, comemorada na mídia, nos CTGs e nos acampamentos, cada vez mais marcada pelo mito, que se sobrepõe à história.

Enquanto escrevia este texto ouvia a canção “Complexo de épico II” de Raul Boeira e Márcia Barbosa, dedicada a mim (o que me enche de orgulho), e a Cyro Martins (in memorian), que faz parte do CD “Cada qual com seu espanto”:

“Outros cantem vitórias num cego tumulto/vejo o pago cansado de ter que engolir tanto triunfo/ele pulsa encoberto, distante dos palcos de guerra/saturado de lendas, tá pedindo uma trégua (...)

Epopeia... eu tentei, mas orgulho me falta/ negras lanças, quem fez da bandeira essa mortalha?/cada página em branco só deixa mais rota a batalha/ não me falte a memória quando os bardos se calam (...)

Inda agora, porém, sobrevivem os ritos/ se negamos a história, as velhas crenças petrificam/todo dia um passado inventado se faz redivivo/ quem de nós hoje ganha com esse éden perdido ?”

Dez verdades sobre a Revolução Farroupilha, segundo Juremir Machado da Silva


1) Foi uma guerra civil de proprietários rurais em defesa dos seus interesses de classe, que não contou com apoio da parte considerável da população, especialmente das principais cidades como Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. 2) Enquanto a Balaiada, no Maranhão, foi uma guerra dos pobres e abolicionista, a Revolução Farroupilha foi conservadora, não previu a abolição da escravatura na Constituição que chegou a ser escrita, usou os negros como mão de obra militar no momento do aperto e os traiu em Porongos. 3) Os negros traídos em Porongos foram, antes de tudo, os infantes, que lutavam com armas de fogo. Canabarro retirou o cartuchame da infantaria na véspera do ataque de 14 de novembro de 1844 apesar de três avisos da aproximação do adversário: 1) no dia 11, a patrulha farrapa do major Polvadeira bateu-se com a vanguarda inimiga, comandada pelo tenente Fidélis, e foi batida. Morreram seis homens; 2) a irmã do general Neto, proprietária de campos nas imediações, mandou avisar que vira soldados de Moringue nas proximidades. Canabarro destratou o mensageiro: "Moringue, sentindo a minha catinga, aqui não vem". 3) Um prisioneiro dos imperiais foi libertado e voltou para as tropas farroupilhas. Os lanceiros também foram traídos, pois expostos a uma surpresa combinada com o adversário, mas, ao menos, tinham lanças e cavalos. Canabarro fugiu só de cuecas enquanto os negros eram mortos. 4) Os negros que caíram prisioneiros foram entregues ao Império e levados ao Rio de Janeiro para o Arsenal da Marinha. Em História Regional da Infâmia, o destino dos negros farrapos e outros iniquidades brasileiras, mostro como se deu a entrega dos negros, que seguiram para o Rio de Janeiro na barca Triunfo da Inveja. "Em 2 de março de 1845, finda a guerra, David Canabarro escreveu a Caxias informando sobre a entrega dos negros: “Por Israel Antunes da Porciúncula faço acompanhar até a presença de V. Ex. noventa libertos, com seus armamentos, para terem o destino por V. Ex. indicado”. Em 4 de março de 1845, José Santos Pereira, comandante da Segunda Divisão, à margem do rio Santa Maria, passou recibo a Canabarro: “O Senhor Barão de Caxias (...) ordenou-me quando marchou deste campo para Bagé, que abrisse os ofícios que viessem para ele, o que fiz com o que V.Sa. lhe dirigiu em data de 2 do corrente (...) fico de posse dos libertos que lhe remeteu”. Em 5 de março de 1845, Caxias escreveu ao ministro da Guerra, Jerônimo Coelho: “Os escravos que eles ainda conservavam armados, foram entregues com suas armas, e seu número já não excede a 120 (...) Os escravos mandei adir aos corpos de Cavalaria de Linha, até seguirem para essa Corte na forma das ordens que recebi”. Recebeu e cumpriu. A questão dos escravos fora o ponto mais difícil para alcançar a paz. Em 7 de Maio de 1845, o ministro cobrou de Caxias o envio dos negros: “Sua Majestade o Imperador mandando renovar a ordem a Vossa Excelência designada na última parte do Aviso reservado do 1º de abril, determina (...) que Vossa Excelência na ocasião de remeter para esta Corte os escravos entregues pelos rebeldes, e quaisquer outros anteriormente prisioneiros, os faça acompanhar de relações nominais, tanto agora deles, como dos senhores, a quem pertencem”. Em 1º de agosto de 1845, o ministro da Marinha, Cavalcanti de Albuquerque, especificou: “Deverão ser remetidos para esta Corte tanto os escravos que forem aí pagos como os que devem ser aqui avaliados, a fim de se lhes dar o conveniente destino” (Avisos de Guerra, AHRGS. Bl. 049). Em 5 de setembro de 1845, Albuquerque enviou correspondência a Caxias alertando que algo não estava batendo: “Havendo o Brigadeiro graduado Luis Manoel de Jesus remetido uma relação de oitenta e oito libertos, que por ordem de Vossa Excelência deviam seguir para esta Corte, e não tendo aqui chegado os que constam da relação junta assinada pelo Oficial Maior desta Secretaria de Estado; assim o comunico a Vossa Excelência (...) a fim de dar as convenientes providências a tal respeito”. Triumpho da Inveja mostra que a cobrança surtiu efeito. Em maio de 1848, uma comissão da Câmara dos Deputados estava reunida para dar destino aos negros farrapos." A traição foi completa, do massacre à entrega. 5) Bento Gonçalves morreu rico, como prova o seu inventário, deixando mais de 50 escravos para seus herdeiros. A lenda dizia que ele tinha acabado a vida como o "mais pobre dos homens". 6) Em dez anos de guerra civil, morreram entre 2900 e 3400 pessoas, uma média de 300 por ano, menos de uma por dia. Mesmo para a população da época, era mais fácil morrer de gripe. 7) Praticou-se de tudo: estupro, degola, saque, apropriação de terras alheias e sequestro. Antônio Vicente da Fontoura, encarregado de negociar a anistia com o Império, denunciou os estragos da corrupção. 8) Os farrapos receberam indenizações secretas do Império. Fontoura foi encarregado de fazer a distribuição do dinheiro no que chamou de "quatro dias do inferno". A fome pelo dinheiro levou à apresentação de notas frias e uma disputa sem limites. Fontoura chamava Bento de infame. 9) Nunca houve um tratado de paz de Ponche Verde. Canabarro e Caxias não estiveram juntos às margens do rio Santa Maria para um aperto de mão e a assinatura de um documento de paz. 10) A história é uma ficção reconstruída a cada geração. Os farrapos ficaram no Campo da Carolina, em Ponche Verde, margem esquerda do rio Santa Maria. Caxias estava na margem direita. Depois que os rebeldes enviaram correspondência aceitando as concessões do Império, o barão mandou escrita a sua proclamação saudando a paz. A palavra de Caxias valia para os dois lados. Os farroupilhas acharam melhor crer que ele ludibriava o Império para atender ao que pediam. Negou-se, por exemplo, durante décadas, a existência do decreto imperial de 18.12.44, que dizia literalmente: “Recorrendo à minha imperial clemência aqueles de meus súditos que, iludidos e desvairados, têm sustentado na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul uma causa atentatória da Constituição Política do Estado, dos decretos da minha Imperial Coroa formados na mesma Constituição e reprovado pela nação inteira; que leal e valorosamente se tem empenhado em debelá-la; e não sendo compatível com os sentimentos do meu coração o negar-lhe a paternal proteção a que os ditos meus súditos se acolhem arrependidos: Hei por bem de conceder a todos, e a cada um deles, plena e absoluta anistia, para que nem judicialmente, nem por outra qualquer maneira, possam ser perseguidos ou de alguma forma inquietados pelos atos que houverem praticado até a publicação deste decreto”. As instruções reservadas de 18 de Dezembro de 1844 obrigavam Caxias a exigir dos chefes rebeldes pedidos de anistia e atendiam a maioria das demandas de concessão dos farrapos, mas não previam liberdade para os negros. Afirmavam, no artigo sexto, que os escravos seriam “remetidos para a Corte, à disposição do governo imperial que lhes dará conveniente destino”. Em 4 de janeiro de 1845, em ofício ao ministro da Guerra, Caxias jurou cumpri-las religiosamente. Em carta a Canabarro, em 27 de fevereiro de 1845, Caxias foi enfático: “Ao Senhor Antônio Vicente da Fontoura mostrei não só o Decreto Imperial que garante quanto tenho prometido, como as instruções que o acompanham, e espero que ele de tudo o cientifique”. Canabarro e Fontoura sabiam da anistia e com ela concordaram. Como diz Moacyr Flores, Caxias não tinha autoridade para fazer um tratado de paz – pois o Rio Grande não era reconhecido como nação – nem para libertar os negros. Em correspondência ao ministro da Justiça, em 4 de março de 1845, Caxias enterrou ilusões: “Tendo todos os chefes que os capitaneavam sem exceção se me apresentado e pedido anistia, mandei publicar o decreto de 18 de Dezembro (...) seguindo à risca as instruções que me foram antes dirigidas”. Em 18 de março de 1845, o barão mandou cópia do decreto imperial ao promotor da Comarca de Rio Pardo para chancelar uma anistia. Remeteu cópia do mesmo documento também para a Câmara Municipal de Pelotas como comprova esta carta guardada na Biblioteca Pública Pelotense: “Remeto a Vosmecês para sua inteligência, e para que façam contar no seu respectivo Município, a inclusa cópia do Decreto de 18 de Desembro de 1844. Deus Guarde a Vosmecês. Palácio do Governo em Porto Alegre 15 de Abril de 1845. Conde de Caxias”. A cópia do decreto enviada para Pelotas (MPP 005) levava a assinatura de confirmação de Domingos José Gonçalves de Magalhães, secretário de governo de Caxias. Desaba a tese muito difundida de que não houve anistia ou de que esse fato permaneceu totalmente escondido por mais de uma década dos principais chefes farroupilhas. Era público. Público e notório.


Fonte: Correio do Povo e rdplanalto.com


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