top of page
Buscar
Foto do escritorStart Comunicação

O que vamos celebrar neste 25 de julho? - por Ricardo Brasil Charão


Imagem: Acervo de Sílvio Coelho dos Santos/ IHU.

A história da ocupação humana da região do Vale do Rio dos Sinos não inicia com a chegada do primeiro grupo de 37 imigrantes de fala alemã que, 25 de julho de 1824 desembarca no chamado Passo do Rio do Sinos. Tampouco inicia em 1788 quando se deu a transferência da Real Feitoria do Linho Cânhamo do Rincão do Canguçu para o então Faxinal do Courita às margens do Rio do Sinos. Da mesma forma, o início da ocupação não se dá com a chegada de pequenos lavradores, posseiros e proprietários de terras que por volta de meados do século XVIII passam a ocupar a região da encosta da serra, áreas de mata e alagadiças que circundam os vales do Rio do Sinos e do Rio Gravataí, áreas pouco valorizadas pela pecuária. A ocupação da região por seres humanos se dá em tempos imemoriais por grupos indígenas, de diferentes etnias que século XIX adentro ainda disputarão as terras da região com elementos oriundos das diferentes levas de ocupação que chegaram depois.


Não é todo ano que se comemora 200 anos de algo. Todavia, cabe lembrar que no 25 de julho de 2024 não se comemora 200 anos de São Leopoldo. Também se não comemora 200 anos da emancipação política da cidade. O que se lembra nesta data é a chegada de um novo grupo de imigrantes, vindos do distante norte da Europa que, em função de um projeto político e geopolítico do recém-nascido Império do Brasil, passa a ocupar gradativamente a região a partir da fundação de uma Colônia Alemã, criada a partir da Decisão nº 80, de 31 de março de 1824 e, denominada Colônia Alemã de São São Leopoldo através de Portaria Imperial de 22 de setembro de 1824, nas terras onde até então estava estabelecida a Feitoria do Linho Cânhamo.


É nas senzalas dos escravos da Feitoria que os primeiros imigrantes ficarão alojados e, no depósito para a guarda do cânhamo produzido nesta Feitoria, é que o pastor evangélico Johann Georg Ehlers irá oficiar o primeiro culto protestante nestas terras, segundo testemunho de Wilhelm Rotermund. Também é nas terras da Feitoria que os primeiros imigrantes de fala alemã, muitos deles até então sem conhecimento da agricultura, irão aprender com os escravos da Feitoria o plantio da mandioca, do feijão, da abóbora e de tantas outras culturas estranhas à agricultura europeia. Da mesma maneira, é ali que terão contato com indígenas guaranis, transferidos das antigas reduções jesuíticas para o aldeamento de Nossa Senhora dos Anjos de Gravataí, sendo alguns deles designados para cuidar do gado bovino na denominada Estância da Feitoria, na margem direita do Rio do Sinos, onde hoje se localizam partes dos municípios vizinhos de Novo Hamburgo, Estância Velha e Portão. Não podemos esquecer que também foi na Feitoria que este primeiro grupo de imigrantes teve contato com famílias oriundas das Ilhas dos Açores, também designadas para receber terras na região.


Assim, a recém-nascida Colônia Alemã de São Leopoldo é, em sua origem, multiétnica e diversa, ainda que este não fosse o desejado por seus idealizadores. Aos escravos da antiga Feitoria, em número de 321 quando se faz o inventário dos bens deste estabelecimento estatal, serão transferidos gradativamente para a Corte no Rio de Janeiro e ao longo dos anos de 1824 e 1825 os primeiros imigrantes de fala alemã manterão contato com estes e dependerão de seu auxílio para a construção de casas, para a realização de obras públicas como a construção de pontes, bem como para o plantio das primeiras lavouras como atestam as correspondências entre o Inspetor da Colônia Alemã de São Leopoldo e o Presidente da Província, autoridades da época. Assim, a jovem colônia não só é diversa, como tampouco ela está isolada, fato este brilhantemente trabalhado pelo professor Marcos Justo Tramontini em seu livro “A organização social dos imigrantes”, no qual estudou o quanto os primeiros imigrantes estavam inseridos em redes comerciais e políticas que chegavam até a capital Porto Alegre.


E por falar em Porto Alegre, da colônia alemã irá nascer uma povoação, designada “Capela Curada” em 1828 e elevada à categoria de “Villa” em 1846, passando a possuir autonomia política, administrativa e orçamentária. É em 20 de maio de 1846 que a Câmara de Vereadores de Porto Alegre irá receber do presidente da Província do Rio Grande o ofício demarcando os limites do novo município e ordenando a que se procedesse à eleição da Câmara de Vereadores local. A localização do núcleo urbano, disputado pelas emergentes forças econômicas e políticas locais, contrariamente ao planejado originalmente, ficará localizado às margens do Rio Sinos e, em razão disto, seguidamente o rio tomará aquilo que é dele e a cidade passará por inúmeras inundações, como esta que vivemos recentemente.


A Villa de São Leopoldo terá logo seu Código de Posturas. Lido, discutido e aprovado na 4ª e 5ª sessões da recém-instalada Câmara de Vereadores, nos dias 13 e 14 de agosto de 1846. É neste Código de Posturas (Lei Orgânica do Município) que se lê nos artigos 12 e 20 o seguinte: “Nenhum escravo, ou escrava poderá viver sobre si em qualquer caza, seja qual for o motivo, ou pretexto, sob pena de pagarem os Snrs. Dos mesmos escravos pela primeira transgressão 4: 000, e pelas mais o duplo, incorrendo em iguais multas o proprietário da caza sendo pessoa diversa” e “Os capitães do mato vencerão a quantia de 4:000 rs. De cada hum escravo, ou escrava, que andarem fugidos dentro dos Lemites desta Villa, e no Município, e sendo em quilombos em que se acharem porção delles, vencerão a quantia de 20:00 rs. De cada hum, cujas quantias lhe deverão ser pagas pelos proprietários dos mesmos escravos. Entende-se por quilombo logo que haja reunião de trez escravos para cima”.


Pouco mais de dois meses após sua criação, a Villa de São Leopoldo já possuía seu capitão do mato. Sim! São Leopoldo teve capitão do mato! Este fato é um forte indicador do quanto a jovem colônia, com pouco mais de 20 anos, estava completamente integrada com a sociedade circundante, uma sociedade escravista. Leis promulgadas posteriormente, como a Lei Provincial nº 143 de 21 de julho de 1848 e especificamente a Lei Provincial nº 183, de 18 de outubro de 1850 irão proibir a introdução de escravos no território das colônias (Art. 1º - É proibida a introdução de escravos no território marcado para as colônias existentes, e para as que para o futuro se formarem na Província”. Mas já era tarde demais, os primeiros e imigrantes e seus descendentes em permanente intercâmbio com a sociedade local irão, sempre que possível, tornar-se senhores de escravos. Este processo de aculturação foi tão profundo que até mesmo o padre José de São Luiz Bimbert, pároco da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de São, instituída em 1846, da elevação de São Leopoldo a Villa, foi proprietário de escravos. Registro de 1858 atesta a concessão de alforria a sua escrava Emiliana “com a condição porém de me servir por 13 anos, e aos meus herdeiros só”.


As informações trazidas anteriormente não tem por objetivo desqualificar o trabalho e o sofrimento vivenciado pela maioria dos imigrantes de fala alemã e seus descendentes que foram chegando em sucessivos grupos principalmente a partir de 1845, quando tem fim a Guerra Farroupilha. Longe disto, mas tem a intenção de mostrar que não estavam isolados e que assim como estes, muitos outros trabalharam duro para conquistar seu lugar naquela sociedade que emergia, marcada por conflitos e disputas.


Os anos foram passando e a Villa foi crescendo em população e em importância política e econômica. O aumento da população e a chegada de novos imigrantes vindos do norte da Europa levou à expansão da Colônia, bem como à fundação de outras, agora de iniciativa particular que foram ocupando terras em direção à encosta da Serra e aos vales de outros rios. O território da São Leopoldo que conhecemos hoje é uma fração daquela São Leopoldo, que se estendia do que hoje é Sapucaia do Sul até Gramado e Canela, vizinhando com os campos de cima da serra. É da colônia alemã e da Villa de São Leopoldo que se originarão diretamente ou indiretamente dezenas de municípios que conhecemos.


Talvez algumas pessoas se perguntem pela legitimidade e motivos de São Leopoldo designar-se “berço da colonização alemã” (título concedido pela Lei Federal nº 12.394/2011), na medida em que outras cidades “preservam” bem mais suas “raízes e cultura”. O que São Leopoldo preserva quando comparada com cidades do Vale do Paranhana ou da Serra? E por qual motivo dar tanta importância para tal fato, na medida em que hoje a cidade encontra-se completamente integrada à região metropolitana de Porto Alegre e a língua, bem como os costumes supostamente alemães, sequer foram relegados a meras lembranças do passado para a maioria de seus moradores? No ano em que se celebra os 200 anos da chegada dos primeiros imigrantes de fala alemã a esta região não se pode fugir destas perguntas e de tantas outras. É preciso encará-las de frente!


O ano de 2024 na medida em que marca os 200 anos da chegada dos primeiros imigrantes de fala alemã ao RS não é uma data a ser celebrada apenas por São Leopoldo. São muitos os municípios que neste 25 de julho de 2024 estarão rememorando e celebrando este fato. A questão talvez não esteja no comemorar; mas sim, no que iremos comemorar, que passado queremos revisitar e que memória queremos cultivar. O que aconteceu no passado não se repete. O filósofo grego Heráclito de Éfeso afirmou certa vez que “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. As águas do Rio do Sinos de 1824 não são as mesmas águas em 2024. Aliás, diga-se de passagem, que faz muito tempo que as águas do Rio do Sinos pedem socorro.


É legítimo que se comemore os 200 anos da chegada dos primeiros imigrantes de fala alemã. É um direito e até um dever de nossa comunidade. Todavia, não foi por acaso que iniciei este breve texto tratando da diversidade presente já na antiga Colônia Alemã de São Alemã. Não podemos nos enganar e olhar para o passado com os óculos daqueles e daquelas que quiseram construir uma narrativa que invisibilizou todos os demais que com sua cultura e trabalho também forjaram as cidades que hoje habitamos. Historiadores e memorialistas não vivem dentro de redomas de vidro, em ambientes assépticos, isolados da vida como ela é. Ao entrar nas águas do passado são sempre seletivos, pois têm suas formas de ver o mundo, as relações interpessoais, a economia, a cultura e a política. E isto, longe está de ser um problema.


Talvez devamos começar nos perguntando porquê motivos alguém migra. Excetuando- se poucos aventureiros, a maioria dos seres humanos ao longo dos milênios migrou porque procurava algo melhor para si e para os seus, mais recursos naturais, uma vida menos sofrida, menos opressão, mais oportunidades. Por esta razão que os primeiros imigrantes de fala alemã

que aqui chegaram e aqueles que vieram depois deles deixaram as locais onde viviam no norte da Europa. Esta decisão, ainda hoje, é quase sempre muito difícil de se tomar. Implica em romper com laços afetivos e sociais, com o ambiente no qual se está imerso, com um mundo que se acredita conhecer. Os milhões de seres humanos que nos dias de hoje encontram-se deslocados em razão de conflitos armados, fome, perseguição política ou religiosa vivem

situações análogas.


Quando se deixa o lugar onde se vive, na maioria das vezes, se leva quase nada ou poucos pertences. Os conhecimentos construídos ao longo de gerações podem ter pouca valia no novo lugar onde se habitará. Não se conhecia a mandioca, o feijão e a abóbora, tampouco se sabia como plantá-los e cozinhá-los. Na língua falada não havia vocábulos para expressar estes novos alimentos, ferramentas, fenômenos naturais. A língua falada, ainda que não se perceba, sofrerá mudanças para expressar este novo. Ela já não será mais aquela falada na terra natal, a qual também sofrerá mudanças. Muito daquilo que passa a ser designado “típico”, não é típico no lugar que se deixa para trás. A cultura se reinventa.


A cultura, aquilo que distingue uns humanos de outros, é viva. Como canta Jorge Drexler “Lo mismo con las canciones, los pájaros, los alfabetos/Si quieres que algo se muera, dejálo quieto”. Cultura e identidade são movimento, permanente movimento, capacidade de se refazer, de se reinventar. Aí repousa a riqueza do humano. Então o que celebrar neste 25 de julho de 2024? Certamente, seria um equívoco e um desperdício de oportunidade rememorar uma narrativa ufanista da imigração e colonização. Não há mais lugar para leituras do passado como aquela expressa na “marcha do imigrante”, que pela lei Municipal nº 4.257 de 26/06/1996 passou a ser o hino oficial de São Leopoldo, onde lê: “Louro imigrante, só a natureza / Te viu chegar para trabalhar aqui / e o Gigante vale, com certeza se engalanou para esperar por ti”. Não, não foi apenas a natureza que presenciou a chegadas dos primeiros imigrantes de fala alemã.


Neste 25 de julho de 2024 lembremos de homens, mulheres e crianças que após exaustiva viagem chegaram com muito pouco ou quase nada na bagagem. De formas distintas, africanos escravizados, indígenas guaranis e imigrantes das Ilhas dos Açores também chegaram com muito pouco ou quase nada. São Leopoldo e o Vale dos Sinos são terras de imigrantes, desde a chegada dos primeiros povos originários na região, passando pela chegada de povos originários da África, de imigrantes de fala alemã, por aqueles que aqui chegaram na década de 1970 expulsos pelo êxodo rural promovido pela ditadura civil-militar para se tornar mão de obra no pólo coureiro-calçadista que se expandia, até aqueles e aquelas que chegam nos dias atuais vindos da África ou de outras nações da América Latina. Esta é uma terra de imigrantes, de diversidade e esta é sua principal riqueza. O direito à cidade implica o direito à memória de todos e todas e é condição inegociável para a construção de uma sociedade democrática e plural. Não esqueçamos neste 25 de julho de 2024 aquilo que nos ensina Drexler quando canta: “Somos una especie en viaje / No tenemos pertenencias sino equipaje / Vamos como el polen en el viento / Estamos vivos porque estamos en movimiento / Nunca estamos quietos, somos transhumantes / Somos padres, hijos, nietos y bisnietos de inmigrantes …”





*Ricardo Brasil Charão é historiador.

0 comentário

Comments


Banner-superior---980px-largura-X-135px-altura.png
Caixinha de perguntas Start.png
bottom of page