Na segunda metade do século XIX surgiram nas regiões de colonização do sul, e nas cidades brasileiras que receberam imigrantes alemães, numerosas associações criadas para diversos fins - predominando, numericamente, aquelas identificadas com atividades culturais e esportivas.
A imigração germânica para o sul do país começou em 1824, com a fundação da colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e teve continuidade em 1829, com a instalação de mais três colônias (duas em Santa Catarina e uma no Paraná). O governo imperial interrompeu a colonização em 1830, e a Revolução Farroupilha, iniciada em 1835, impediu a retomada do processo até meados da década de 1840. A partir de 1850, com a promulgação da Lei de Terras, as províncias assumiram o encargo de colonizar seus territórios, e a imigração alemã para os três estados meridionais se intensificou, surgindo mais de uma centena e meia de “colônias alemãs” só no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Imigrantes alemães e seus descendentes também participaram da colonização do planalto meridional, do Rio Grande do Sul até o Paraná. E, desde o início do processo imigratório, um número significativo de imigrantes se estabeleceu em cidades brasileiras (especialmente em Porto Alegre, Curitiba e São Paulo) ou nas cidades localizadas nas regiões de maior concentração de alemães e descendentes, como São Leopoldo, Blumenau, Brusque, Joinville, Santa Cruz, Ijuí etc1. Em toda parte proliferou uma intensa “vida associativa” (Fouquet, 1974 p. 155) assumida como característica própria da etnia pelos descendentes: de ajuda mútua, beneficentes, culturais, esportivas, musicais, etc., as associações foram definidas como “germânicas”, portanto, demarcadoras, em algum grau, da etnicidade.
Num trabalho sobre a nacionalização do Vale do Itajaí (SC), Rui Alencar Nogueira, oficial do 32° Batalhão de Caçadores sediado em Blumenau, fez duas observações que dimensionam o significado das associações recreativas na vida cotidiana das “colônias alemãs”. A primeira se refere à Sociedade de Atiradores:
“Também aos domingos, as ‘Sociedades de Atiradores’ ficam cheias de sócios, os quais durante todo o dia se entregam à prática do tiro ao alvo a uma distância de 150 metros, entremeiando o esporte com o uso de bebidas alcoólicas.
Mas, não somente os homens se exercitavam. As mulheres recebiam lições de educação física, quer em dias determinados da semana, quer à noite, quando durante o dia não era possível.
Fácil é verificar o perigo que representavam as referidas agremiações, que reuniam homens e mulheres sob um comando único, obedecendo a um mesmo ideal para atingir o objetivo final.” (Nogueira, 1947, pp. 40-41).
A segunda deixa entrever a forma brutal de intervenção neste tipo de associação, em nome da segurança nacional:
“As populações do vale do Itajaí incrementam e desenvolvem as sociedades recreativas, muitas delas apresentando objetivos escusos e perigosos, como as de atiradores e as de ginástica.
Inúmeros clubes de remo, canto, futebol, músico-teatral e ‘jogo de bola’ (boliche) espalham-se por todos os recantos.
As sociedades ginásticas congregam crianças, homens e mulheres. Mantêm sobre todos uma subordinação, fazem-nos praticar educação física e os submetem a uma disciplina germânica. As vistas dos dirigentes da campanha nacionalizadora voltaram logo, para tais centros. Ambas as sociedades acima enumeradas serviram de acantonamento para a tropa, logo que chegamos à cidade e não dispúnhamos de Quartel.” (Nogueira, 1947, p. 101).
Os “objetivos escusos” insinuados por Nogueira situam os dois tipos de Verein (associação ou sociedade) no debate mais amplo sobre o “insulamento” das regiões colonizadas por imigrantes alemães no sul do país. Segundo a lógica nacionalista, expressa por militares como Nogueira, as associações recreativas conhecidas pelas denominações de Schützenverein, Turnverein e Gesangverein (ou Sàngervereiri) - respectivamente, Sociedade de Atiradores, de Ginástica e de Canto (ou de Cantores) - constituíam, por suas atividades, mais uma evidência do “’perigo alemão”. Eram, pois, imaginadas como “fatores de desagregação do espírito nacional” que a campanha de nacionalização implementada durante o Estado Novo (1937 - 1945), devia erradicar.
Ao classificá-las como “associações cívico-culturais“, outro autor participante da referida campanha (Jamundá, 1968), procurou dimensionar sua vinculação com o nacionalismo alemão. Nogueira não especifica o “objetivo final” das associações de atiradores e de ginástica; simplesmente, insinua que ali havia algum tipo de treinamento que ameaçava o Estado. Essa forma de especular sobre o “perigo alemão” tem a ver com a presença nazista, amplamente denunciada pelos órgãos de segurança no final da década de 1930. Afinal, divulgou-se, então, a infraestrutura partidária que foi montada no Brasil pelo NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), as ramificações locais de agremiações nazistas em atividade na Alemanha, a influência da versão nazista do nacionalismo alemão na imprensa teuto-brasileira, etc. Para os militares encarregados de impor a brasilidade em espaços do território nacional considerados sob influência alienígena, as atividades daquelas associações sugeriam intenções separatistas - um tema várias vezes retomado no discurso nacionalista brasileiro desde as últimas décadas do século XIX.
Os imigrantes alemães e seus descendentes eram considerados avessos à assimilação, “enquistados”, alvos fáceis da propaganda pangermanista (até a Ia Guerra Mundial) e nazista, impregnados pelos ideais do jus sanguinis, portanto, distantes de quaisquer sentim entos de brasilidade. Concentrada em algumas regiões circunscritas no sul, essa população poderia desencadear um processo de secessão, patrocinado pela Alemanha - este é o significado mais comum da expressão “perigo alemão”. Assim, ao definir as associações como “cívicas”, Jamundá invocou suas congêneres do passado germânico e seu papel como “agências eficientes” do nacionalismo alemão na luta contra a dominação napoleónica.2 O caráter miliciano da Schützenverein naquele contexto histórico, os quatro efes da Turnverein e sua natureza simbólica na formulação do nacionalismo romântico, efetivamente, pareciam recriados nas regiões de colonização tomando-se, portanto, um “problema de segurança”.
Fonte: Revista Travessia/Giralda Seyferth/Pesquisa de Bado Jacoby
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