Evento climático de 2024 no RS, e a possível responsabilização de entes e agentes públicos - Por Marcelo da Rosa
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- 11 de abr.
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Passados um ano desde a tragédia climática de abril/maio de 2024, momento em que os gaúchos estiveram atônitos pela gravidade daquela que foi, possivelmente, a maior tragédia já vivida no Rio Grande do Sul, para além de fazer um balanço dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais daí advindos, resta-nos analisar e estudar, primeiro, se houve de fato um fenômeno natural extremo, cujos efeitos era impossível prever, evitar e/ou impedir; e segundo, se as ditas omissões de gestores públicos, poderiam de fato ter impedido, ou diminuído os efeitos decorrentes do fatídico evento climático.
Muito tem se falado em omissão de gestores públicos da região metropolitana de Porto Alegre; o Ministério Público do Rio Grande do Sul recentemente ajuizou ação civil pública pleiteando indenizações diversas contra o município de Porto Alegre pela cheia histórica que afetou a Capital do Estado do Rio Grande do Sul entre o dia 27 de abril e o final de maio de 2024. A alegação é de que teria havido omissão do ente municipal, em especial de seus gestores públicos, e que isso teria motivado a tragédia, já que o Sistema de Proteção contra Cheias de Porto Alegre existe para resistir a uma cheia de até 6 metros, e os números de abril/maio de 2024 não superaram esta marca.
Na visão do Ministério Público gaúcho, o sistema de proteção deveria ter suportado o volume de água que aportou à Capital, caso houvesse a devida manutenção e atualização do sistema. Essa, contudo, é apenas uma suposição, pois o sistema projetado para suportar até 6 metros de água acima do nível normal do lago guaíba jamais havia sido testado efetivamente na prática, já que nunca as águas subiram sequer próximas a tal nível.
A questão agora será decidida pelo Poder Judiciário. Vale dizer, entretanto, que em ação individual a Justiça Federal da 4ª região já proferiu decisão, ainda sujeita a recurso, apontando que não é possível responsabilizar os entes, já que o volume de chuvas foi excepcional e imprevisível. Na decisão, o juízo da 9ª vara Federal de Porto Alegre asseverou: "em caso de danos materiais provocados por enchentes decorrentes de precipitações em volumes anormais e excepcionais, como no presente caso, deve-se considerar que se trata de evento não previsível, não sendo cabível atribuir ao Poder Público, em qualquer esfera, o dever de suportar o custo de todos os prejuízos sofridos pelos particulares, sob pena de se atribuir a condição de segurador universal"1.
A exclusão de responsabilidade decorre, no caso, de aplicação da regra contida no art. 393 do Código Civil brasileiro, que assenta que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior", e em seu parágrafo único define que "o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".
Não é demais lembrar que a enchente histórica de abril/maio de 2024 superou, inclusive, a de maio de 1941, e acabou por atingir 478 dos 497 municípios gaúchos, afetando 2,4 milhões de pessoas - mais de um quinto da população local - deixando mais de 4 mil desalojados, 173 mortos e 38 desaparecidos. Foi, por muitos, considerada o maior desastre natural da história do país2.
O Rio Grande do Sul foi afetado por aquilo que se chama de evento climático extremo que bateu todos os recordes3. Nunca, mais de 60% do território gaúcho mostrou um volume de chuva maior que 800 milímetros. Em menos de 15 dias, choveu o mesmo que em cinco meses em todo o estado4.
Similar ao que ocorreu em 2024, somente o evento climático ocorrido no distante maio de 1941, em Porto Alegre e sua região metropolitana, na até então histórica, e única, enchente de grandes proporções vivida em Porto Alegre.
Se esse conjunto de fatos e fatores não se inserem na esfera do imprevisível, difícil de imaginar se algo ainda poderia se inserir em tal conceito, o que tornaria, por linha extroversa, letra morta os institutos descritos no art. 393 do Código Civil brasileiro (caso fortuito e força maior).
Portanto, parece muito claro que se esteve diante de um evento climático absolutamente excepcional, e imprevisível, o que afasta a responsabilização dos entes públicos e das pessoas físicas responsáveis pela gestão da coisa pública.
Por outro lado, mas no mesmo sentido, o questionamento que fica é sobre qual teria sido a opinião e reação da população gaúcha se gestores públicos, antes dos fatídicos eventos climáticos de abril/maio de 2024, tomassem a iniciativa de construir e/ou melhorar diques de contenção e demais equipamentos públicos com vistas a prevenir enchentes, gastando para isso centenas de milhões de reais, quiçá bilhões, em detrimento de investimentos em saúde, segurança e educação.
Não é demais lembrar que recentemente se discutiu a possibilidade de derrubada do muro da (avenida) Mauá, em Porto Alegre, ocasião em se tinha a nítida impressão que era questão de tempo para que a tal derrubada ocorresse, já que desde que construído no pós-enchente de 1941 o dito sistema de contenção não foi jamais usado.
A legislação brasileira5 aponta para que "na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo". Mais do que isso, o ordenamento jurídico brasileiro6 determina que "em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente."
Nesse contexto, exigir que gestores públicos, num ambiente de total ausência de catástrofes climáticas deste porte, pelo menos de 1941 no Rio Grande do Sul, houvessem buscado realizar a construção de novos equipamentos públicos e diques, ou ampliação dos já existentes, com o dispêndio de vultuosos recursos públicos em detrimento de investimentos urgentes do cotidiano de quem administra a coisa pública, mostra-se pouco razoável, e como tal indevido.
Por certo que qualquer gestor que ousasse aplicar vultosos recursos para prevenir o improvável seria taxado de mal gestor, e teria seu intento questionado pela esmagadora maioria da opinião pública, e até por órgãos de controle internos e externos, sob a pecha de que tais gastos era "inoportunos".
Portanto, a pecha de omissão não resiste a uma análise menos apaixonada e fundamentada nas regras que norteiam a atividade administrativa no Brasil, principalmente a partir das mudanças implementadas no ordenamento jurídico em 2018, pela lei 13.655.
Em absoluto se prega aqui a ausência de responsabilização de gestores públicos pela eventual omissão causadora de danos aos administrados, em decorrência de eventos naturais que ocorrem corriqueiramente nas cidades brasileiras, fruto de alagamentos gerados pela deficiência dos sistemas de escoamento das águas pluviais. Contudo, o evento climático de abril/maio de 2024 no Rio Grande do Sul, por sua força e ineditismo, demonstrou que não se tratou de mero alagamento, mas sim da completa invasão das áreas urbanas pelos rios que tangenciam os municípios gaúchos, em especial da região metropolitana de Porto Alegre, pelo volume extremo de chuvas num curtíssimo espaço de tempo.
Sabe-se que quem mais sofreu com os deletérios do evento climático de abril/maio de 2024 foi a população diretamente atingida; contudo, imaginar que penalizar entes e gestores públicos apenas para dar uma resposta a essas pessoas não se afigura o melhor caminho, já que além de ilegal produzirá injustiças que ao fim e ao cabo custarão caro aos cofres públicos.

Marcelo da Rosa é advogado e Procurador municipal no Rio Grande do Sul.
Artigo publicado no portal www.migalhas.com.br
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