Neste Bicentenário da Colonização Alemã no Brasil, proponho uma canção para a imigrante e suas descendentes. Em uma perspectiva androcêntrica, as canções são sempre escritas para os colonos, os comerciantes, os artesãos, responsáveis por empreender a saga do imigrante. O “homem”, representante do “nós” universal, é, pois, quem assume o protagonismo, e é somente através das suas representações que a mulher ganha existência nas narrativas. Nessas representações, a mulher é, via de regra, subordinada e invisível. Vou provar meu ponto trazendo uma provocação de um dos mais renomados historiadores da Imigração Alemã no Brasil, o professor Martin Dreher: qual é a mulher que o campo da imigração conhece? Pois o próprio historiador responde: “...a única mulher de que se tem memória no século XIX é Jacobina Maurer”. Além de problematizar esse “esquecimento” das mulheres, pela historiografia oficial, ele vai mais longe, questionando, sobre Jacobina, o tipo de memória que se tem dela. A isso também ele responde: “para existir, é preciso ser piedosa ou escandalosa”. Obviamente, Jacobina entrava nesta segunda categoria, a de um “mau exemplo” de mulher. Jacobina aprendeu a ler quando já era adulta e passou a ler e a interpretar a bíblia para os colonos que frequentavam a sua casa, subvertendo a ordem social da época. O saber sempre foi coisa associada ao masculino, e a evangelização, ofício dos representantes de Deus na terra, homens, evidentemente. Jacobina surge, então, como uma profetiza louca, uma fanática religiosa, uma corruptora de colonos.
Pois bem, sabemos que Jacobina garantiu suas páginas na história entrando pela porta dos fundos, por seu péssimo exemplo de protagonismo feminino. Somente nas últimas décadas é que ela foi ressignificada, ressurgindo como uma espécie de “mito fundante” da comunidade. Isso prova que a memória não é guiada pelos fatos em si, mas pela significação dos fatos pelos atores sociais. Ou seja, nas palavras de Jöel Candau, a memória passa pela atualização do passado, mais do que ser uma construção fiel deste. Mas e as outras? Como são representadas todas as outras mulheres? As outras ficam circunscritas ao discurso ideológico homogêneo de “boas mulheres”, “mulheres viáveis”, “não escandalosas”, aquelas que desempenham os papéis normativos impostos e que jamais contestam os espaços predefinidos para elas: são colonas trabalhadoras, mães devotadas e boas esposas. Elas permanecem nos limites da feminilidade, limites ferozmente patrulhados pelos homens, ficando responsáveis pelo ambiente doméstico, um mundo de “menor valor”, uma geografia limitada do quarto à cozinha. Os contratos sociais do mundo externo, o que é realmente tido como importante, são conduzidos pelo homem: os negócios, o conhecimento científico, a vida pública.
Por isso, ressignificando o passado com os olhos do presente, proponho uma canção para elas. Uma canção que contemple a pluralidade das mulheres teuto-sul-rio-grandenses na tentativa de entendermos melhor as suas contribuições no processo da imigração. Desconstruir estereótipos de gênero e lançar novas interpretações nos trará um panorama mais complexo e justo sobre este fenômeno social que marcou profundamente a cultura, a política e a economia do país.
Para concluir, como descendente de imigrantes alemães, quero fazer uma canção para a minha bisavó paterna, da qual herdei o gosto por histórias. Entre uma fornada de pães de cará e um molho de carne com batatas, em volta do fogão, ela atiçava a minha imaginação de criança com fábulas sobre os meus antepassados vindos de uma terra distante e fria para o Novo Mundo em uma viagem interminável. Colona forte, sempre com um brilho de malícia dançando em suas pupilas e um sorriso insinuado nos lábios, ela me inspirou em tantas coisas que só o distanciamento histórico me fez ver. Hoje, eu canto Adelina Lenhardt, uma mulher escandalosa. Escandalosamente, ela subverteu os papéis de gênero da época ao casar com o amor da sua vida. Um amor não abençoado pela família. Contudo, sem bênçãos e sem atenuantes, ela fugiu para viver a sua história, não se furtando a pagar o preço pela insubordinação. Caro, obviamente.
*Profª. Drª. Mariléia Sell é jornalista e escritora.
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