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A teoria do delito e os motivos para justificar a decisão do STF - por Lenio Luiz Streck


Depois da barbárie vista no domingo passado, dia 8/1, que certamente ficará na história do Brasil como uma mancha do que não é democracia e nunca poderia ter sido vista como atos democráticos ou de protestos políticos, veio a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes e referendada pela corte.


Sobre a responsabilidade penal dos afastados a omissão é patente. Há bons argumentos que, certamente, irão impor algum tipo de imputação penal aos agentes públicos que, por meio de sua inação, contribuíram significativamente para a ocorrência do resultado. A questão agora é delimitar os tipos penais e a inserção dos autores, coautores e partícipes no bojo da perspectiva delitiva. Entendo que há três possibilidades:


(1) a participação através de um auxílio moral por meio da inação intencional do agente e o seu comprometimento com o resultado. Até mesmo é possível se questionar com base na exclusão mental hipotética: fosse a conduta do agente outra, o resultado teria sido o mesmo?


(2) O crime comissivo por omissão depende de vários critérios. A decisão do ministro Alexandre dá a entender que há hipótese de ato comissivo por omissão. É preciso, porém, estabelecer a relação entre a fonte produtora do perigo (lei ou outro meio jurídico válido) e os seus devidos limites. Há uma obrigação clara de evitar o resultado? Talvez fique mais claro estabelecer a posição de garantia por meio de uma relação de causalidade fática como a alínea "c" do parágrafo 2º do artigo 13 do CP (por meio da conduta antecedente, criou o risco da ocorrência do resultado).


Pelo que se viu, o antigo secretário de Segurança do DF saiu antecipadamente de férias e permitiu a destruição fascista, a quem ele se alia ideologicamente. Ademais, para o Direito Penal aquelas pessoas que estão na posição de garantidores não precisam realizar diretamente o fato criminoso, ou seja, praticá-lo pessoalmente, justamente porque o Código Penal transforma essa falta de ação em omissão.


Em outras palavras, é como se essas autoridades tivessem agido diretamente praticando as condutas típicas previstas contra as instituições democráticas. Portanto, uma simples leitura do artigo 13, do Código Penal, já permitiria o enquadramento dos agentes políticos responsáveis pelos atos antidemocráticos praticados e todos os demais crimes.


Na condição de garantidores eles não seriam nem partícipes do delito, mas autores diretos porque o fundamento da imputação está relacionado justamente ao fato de terem o dever legal (ou mesmo causal) de evitar o resultado. Os que invadiram, quebraram, depredaram o patrimônio público e atentaram contra o Estado Democrático de Direito respondem como autores diretos destes crimes. Os que podiam evitar e não o fizeram, respondem como autores direto de um crime comissivo por omissão. Tudo conforme preceitua a lei.


Para ser mais simples: o ex-ministro Anderson (e isso vale para outros) tinha obrigação por lei de evitar o resultado. Não há sequer a necessidade de invocar a chamada ingerência.


(3) a última possibilidade — e aqui considero como a mais remota dada a dimensão que tomou o caso — seria a responsabilização criminal por crime praticado por funcionário público contra a administração pública. O fato é saber se os agentes públicos, por uma aderência ideológica à causa golpista, deixaram de agir deliberadamente. Acredito que nesse ponto deverá se analisar o grau de censurabilidade da conduta para estabelecimento de uma imputação penal adequada ao fato. A pergunta que deve ser feita é se houve uma intenção preordenada para permitir o caos por mera aderência ideológica ou se havia comprometimento com eventual golpe de Estado.


De outro lado, a assertiva de que a informação chegou de forma equivocada ou que não foi repassada corretamente para os gestores e administradores também não os socorre. Pensemos sempre de quem tinha a obrigação por lei de evitar o resultado!


Sigo. Atualmente as cortes, na esteira dos precedentes anglo-saxões, admitem punir aquele que deliberadamente fecha os olhos para o que está ocorrendo. É a chamada teoria da "cegueira ou ignorância deliberada" ou "teoria do avestruz", enterrar a cabeça para se exibir da responsabilidade.


Portanto, na linha dessa teoria o gestor ou administrador que podendo se informar do que ia ocorrer e, propositadamente, fecha os olhos, tem a sua conduta equiparada ao dolo eventual. Em outras palavras, assumiu o risco de produzir o resultado criminoso.


Sobre a cegueira deliberada, é importante destacar que, a despeito dos posicionamentos firmes no sentido de aceitação da tese, não desconheço as críticas doutrinárias a ela endereçadas, fundamentalmente sobre o transplante jurídico acrítico desse instituto, dada a diferença significativa entre a teoria do delito daqui e a dos EUA.


No Brasil, a doutrina da cegueira deliberada tem sido utilizada como uma ferramenta para se justificar a imputação do dolo eventual em hipóteses em que há clara conduta culposa, cujos critérios são normativos (exemplo do caso Kiss). O fato, no entanto, é que os tribunais, em grande parte, aderiram a essa perspectiva doutrinária. Não vou discutir isso aqui. Para adiantar, digo apenas que se trata de uma teoria difícil de aplicar por aqui em face da definição do dolo eventual como assunção do risco de produzir o resultado. Porém, como sabemos, a jurisprudência aceita a tese.


É claro, pois, que a responsabilidade dos agentes do Estado deverá ser apurada e, inevitavelmente, dará margem para relevantes discussões jurídicas, especialmente no que concerne à teoria do delito. Isso é natural.


Mesmo o julgamento de Adolf Eichmann — arquiteto da Solução Final Nazista — deu cabo a milhares de escritos a respeito da perspectiva jurídica que permeia a relação entre os comandantes e os subordinados (e executores) dos crimes praticados na Segunda Guerra Mundial.


Evidente que todas essas digressões acima referidas são o instrumental material existente em nossa legislação e jurisprudência que emprestam respaldo à decisão do STF, ao menos de forma perfunctória. Justamente por isso que se trata de uma decisão de afastamento provisório sem a devida consequência penal que deverá ser aprofundada no curso de um inquérito policial e, posteriormente, na respectiva ação penal se houverem elementos que justifiquem a sua propositura. Isso tudo, claro, conferindo o exercício amplo do direito de defesa e das garantias constitucionais que alcançam os investigados, o que agora parece ter se tornado relevante para grande parte da extrema-direita fascista.


De qualquer sorte, o importante é deixar claro que a teoria jurídica do delito tem bons elementos que permitem a construção sólida de responsabilidade penal não só para os autores diretos dos delitos contra as instituições democráticas, ou seja, que praticaram os atos vistos no último domingo, mas também para aqueles que deveriam impedi-los ou que prestaram efetivo auxílio moral. Isso tudo dentro do respeito aos preceitos que regem o Direito Penal.


Por fim, esperemos o curso das investigações e as justificativas que serão apresentadas para verificarmos se terão os fundamentos jurídicos necessários para afastar a responsabilidade penal dos responsáveis.


Lenio Luiz Streck, é jurista e professor

Artigo publicado no portal www.conjur.com.br

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